Arco I: Prisão de Valeseco

Capítulo I: Um porrete, um vegetal e uma luz



A luz do sol permanecia quadrada dentro da sua cela escura e fria. Não sabia há quanto tempo se encontrava naquele local. Sentia saudades do sol em sua forma circular ou até mesmo a face de alguém, apenas vislumbres de alguma coisa perdida na atmosfera atingia a sua retina. A Única coisa ao seu alcance era aquela luz quadrada refletida no canto da cela e as vozes dos guardas que faziam as vistorias e entregavam a comida. Uma por dia, uma mistura de purê esverdeado com pedaços de cenoura e um copo de água e um pão geralmente banhado em fungo. Esse era a melhor parte do pão.
Deitado no canto em frente a porta permanecia esperando alguma coisa acontecer, mas nada iria acontecer ali naquele universo estático e escuro. A latrina ao seu lado fedia a mijo e a seus dejetos que há um breve período aparentemente estava entupida. Sua pele estava seca e pálida, suas unhas grandes e quebradas, os cachos dos seus cabelos estavam desgrenhados e percorriam seus ombros e desciam sobre o seu peito e suas costas.
Ali conhecera homens que apenas lembravam seu pai. E no fim, ele se odiava por se parecer com ele. O ódio pelo o seu pai crescia a cada dia que se passara ali. A única coisa que iria esperar acontecer era a chegada o dia da sua execução. Deixara de fazer uma lista de coisas que queria fazer quando saísse, ela se perdera entre os fantasmas na sua cabeça. As cores fugiam de seus olhos e sonhos, tudo parecia cinza e preto, frio e sem vida, assim como você. Um estado de humanidade que nunca imaginara que existiria.
A única companhia eram formigas e baratas que passeavam entre as celas, em algumas ocasiões trocava palavrões entre os seus vizinhos de cela para não perder a sua fala que há muito não praticava. A porta a sua frente de metal era totalmente trancada, só tinha apenas uma janelinha na qual passava a única refeição do dia e só era aberta quando tinha que ser utilizada para passar as refeições. Não existiam frestas por onde poderia observar os corredores lá fora ou até mesmo entrar ou sentir o calor das tochas que queimavam naqueles corredores de pedra. Calor. Tudo estava congelado inclusive a sua vontade de viver. A sua roupa suja e rasgada já se tornara trapos que ainda insistiam em cobrir as superfícies de seu corpo e o que lhe contentava era o contato de sua pele com as pedras frias da cela que o garantia certeza de vida por sentir alguma coisa além de nada. A janela minúscula do recinto era pequena o suficiente para evitar passar uma cabeça mesmo dando acesso a uma queda livre do penhasco de onde se encontrava a sua cela para o encontro do mar banhado por grandes e afiadas rochas avermelhadas sempre permanecia muito alta, já tentou subir diversas vezes para poder apreciar a paisagem, mas nunca chegou a alcançar a sua borda.
O que havia atrás daquelas paredes, poderia imaginar se quisesse, apenas um mundo cinza vinha à sua frente, um mundo onde jamais encontraria a sua família, onde jamais encontraria a sua mãe. Seu coração estava cheio de lembranças da sua época de infância, dos dias de trabalhos na feira, do sorriso da sua mãe e dos vasos de moedas que deixara em quarto. Será que eles ainda permaneciam lá? Esperava que ninguém tenha achado o seu esconderijo. Mas não sabia dizer com quem estava a sua casa.
Ecoavam no corredor passos que fez com que os seus pensamentos se esvaíssem e ele voltasse à sua realidade. O guarda vinha batendo com o seu porrete em cada porta de ferro e como prêmio recebia um palavrão vindo do interior de cada cela, o barulho ainda vinha longe mas se aproximava. As vozes no fundo indicavam que o guarda não estava só. Pela qualidade da voz do guarda ela o lembrava do gordo e barbudo do Jossuá. Um dos piores guardas naquele lugar que sempre tinha a mania de bater com o porrete em cada cela e gritar os apelidos de cada presidiário, o que ele mais odiara era o dele. Sua voz se perdia no corredor e aparentemente conversava sozinho, mas havia mais passos que ecoavam no corredor. Confuso permaneceu em seu lugar recatado no canto não se importando com as vozes que circulavam e voavam pelo ar. Perto de sua cela dava para ouvir com melhor qualidade o conteúdo da conversa entre os passos do corredor.
O dono daquela voz se dirigia a outra pessoa que até agora não trouxe resposta. A cada cela que batia o porrete dava uma introdução de quem estava lá dentro, e mais uma vez ele pôde ouvir as histórias e os motivos de seus vizinhos estarem ali ao seu lado compartilhando o mesmo ambiente sem vida.
- Esse daqui- depois de dar uma porretada na porta - fazia parte de uma gangue que saqueava as regiões de Campana e Países ao redor, ele era conhecido por ser muito bom em roubar, mas, às vezes agia de forma a matar as pessoas apenas por diversão e ver as outras sofrerem. Um homem horrível e sem muita perspectiva de vida, não irá morrer hoje infelizmente, ainda não foi programado o dia de sua execução. E mais conhecido como "Passa fome".
- Vá se foder seu gordo roxo! - Gritava a voz dentro da cela- Venha aqui dentro se for homem seu desgraçado.
-Calado! - Gritou o guarda batendo o porrete na porta de ferro. - Se continuar irei fazer questão de deixar você sem a sua comida por quatro dias.
- Por mim tudo bem, mas só se você enfiar ela nesse seu cú gordo - Disse a voz dentro da sala com sarcasmo e deboche soltando uma gargalhada que fez ecoar nos corredores causando arrepios em sua pele.
- Vamos Barão, agora esse aqui - disse o guarda batendo o porrete na porta de sua cela, o barulho  metálico ressoou dentro de seu espírito.
Chegou a sua vez. Ele já odiara o que iria ouvir do guarda. "A minha vez", pensou com os punhos cerrados. Já havia chegado o dia de sua execução? Havia se perguntado isso todos os dias naquele lugar, porque aquelas celas são as últimas coisas que eles veem antes desse dia.
-Esse daqui chegou aqui com doze anos, Barão. Matou a sua mãe e seu pai com as próprias mãos por causa de uma moeda você acredita? Chamam ele de "Negociador de pais"
Dentro de sua cabeça só ecoava a sua voz "É tudo mentira, eu só quis proteger a minha mãe", deu vontade de gritar, mas quem iria ouvir, ali dentro ninguém se importava com os corpos atrás das portas de ferro.
-Ele foi recolhido com a desgraça de uma moeda em sua mão, não queria largar ela, é tanto que a corte deixou ele ser julgado segurando aquela porcaria que nem tem mais valor. Fizeram isso porque ele era uma criança, sabe? - Tentou fingir que estava com pena e sua voz trêmula entregava o sarcasmo. Naquele momento mais uma vez acabou de achar mais um motivo para odiar o guarda, mas resolveu permanecer quieto em seu canto.
A voz do guarda felizmente se afastava e isso perturbava menos o corpo dentro da cela.
Sem ter mais para onde ir pelo limite estabelecido na cela, ele permaneceu imóvel e tentou voltar para a sua mente. Antes de imergir em seus pensamentos variados de uma vida que desejara, ouviu a voz que vinha do corredor se dirigir a alguém:
-Barão, vamos? Aconteceu alguma coisa? Um homem como você não pode ficar parado nesse lugar cheio de homens que o matariam por uma simples moeda, não é mesmo?
A sua mente se perdeu entre essas palavras e seu corpo se moveu com a única força que tinha. Jogou-se contra a porta de ferro como repulsa que acabara de ouvir. Aquela piada era para ele, para quem mais seria? " Negociador de pais", seu corpo caiu sem vida no chão. O tilintar do impacto fez os outros presos gritarem e rirem. Ainda do outro lado o  guarda gordo mandava os outros calares as bocas se não ficariam sem a comida. Irritado com tudo aquilo o porrete bate mais uma vez na sua porta.
-Bom saber que estás vivo garoto. Amanhã não terá nada para você. Pode deixar que os cachorros irão fazer bom proveito. Vamos Barão, já está tarde para um homem como você se encontrar perto destes desumanizados.
Frustrado sem conseguir gritar, e de nada adiantaria, arrastou seu corpo para mais perto do canto o mais longe da porta, neste momento queria se perder entre a poeira e a sujeira, no fundo ele sabia o que ele era. Sujeira. Sujo e sem muito valor. Poeira. Facilmente iria se perder perto de qualquer coisa ilustre, grande e cheia de brilho. De nada valia sua existência e esperar o dia de sua execução era a única coisa perto de liberdade que ele teria.
Essa liberdade o deixava com medo. Qual Deus iria julgá-lo depois de morto? Iria para outro lugar pagar os seus pecados ou apenas deixaria de existir? A segunda opção o animava mais, mas o fato de não existir o atormentava. Tudo o atormentava. E nesses momentos o pior inimigo que ele poderia encontrar era a si próprio, seu próprio fantasma de medo e arrependimento.
    Pensando em uma vida que nunca poderia ter adormeceu encostado no canto da cela esperando algo para te tirar dali, estar-se longe de si mesmo. Estar-se morto, já se encontrava falecida a sua alma.



* * *



Nada mudara em sua pequena cela como sempre fora, nenhuma voz, nenhum porrete nas portas e nenhuma visita de outra pessoa naqueles túmulos. O mundo voltou ao seu normal quando ele ouviu o barulho dos guardas entregando as refeições dos presos. A porta tinha uma espécie de janela giratória que dava acesso ao dois lado da porta, por fora os guardas colocavam a comida na janela e ela girava para o seu interior. Sem contato com qualquer um. E em um passe de mágica aparece o seu prato de comida e um copo com água. A comida de sempre que nunca o surpreendeu. Ficaria surpreso que se em seu prato aparecesse uma barata ou até mesmo uma fruta, esses são os dias mais raros.
Prostrado em seu canto sem ter muita força e disposição de adquirir o único prato com comida que ele verá hoje seu corpo se mantém atraído ao chão. Ao insistir ele encontra as últimas forças presentes em seu corpo. Se dirige ao prato e recolhe seu copo. Com o tempo na prisão ele aprendera que nunca deveria beber a água antes de tudo, ela era essencial para fazer descer aquela mistura de purê em sua garganta. Admirava a coragem daqueles que nunca precisaram de um copo para engolir o conteúdo do prato. Assim ele fez. Sem muito ânimo ele recolheu o copo e derramou milimetricamente um pouco de água na superfície de seus dedos para ajudar a dissolver toda a sujeira, assim limpou os seus dedos nos trapos que ainda permaneciam sujos e carregou entre o seu polegar, indicador e o dedo do meio uma porção pequena do purê. "Essa porcaria não tem gosto de nada", pensara enquanto colocava na boca a mistura. Até o gosto da comida tinha lhe sumido. No fim não se importou porque sentir o gosto daquela coisa era a última coisa que ele queria.
Quando a textura do purê insistia em não descer dava um pequeno gole de água para fazer o caminho de ida daquela mistura ao seu estômago. 
Terminada a sua refeição colocou o prato e o copo na janela esperando a vinda do guarda para retirar. Durante muito tempo ele se perguntara o porquê de não vir nenhum talher junto com o prato e o copo, mas ele descobriu que qualquer coisa ali seria o potencial de uma arma. Por mais que os pratos e copos sejam de alumínio e um tanto resistentes já houve homem ali que transformou esses objetos em uma arma e matou um companheiro de cela em um dos banhos de sol quinzenais assim eram os boatos que circulavam nos corredores.
No entanto, surge em sua cabeça um pensamento do qual ele nunca percebera e só ali. Porque fora tão inocente em todas as suas indagações, sem ver mal nenhum e sem perceber que onde ele estava a vida das pessoas estavam programadas sobre a mira de uma caneta em um alvo de papel. Estranho era pensar isso de si mesmo. Inocente.
A janela da porta gira. Prato e copo recolhidos. Se passam algumas infinidades de minutos e algo muda por completo a sua fadada rotina.
Sem esperar a porta de ferro se abre e como um estrondo o barulho das ferragens rangendo pede a atenção de todos que pudessem ouvir. Violentamente entra em sua cela a luz das tochas queimando nos corredores, que sem o maior carinho atacam suas costas o fazendo subir aos céus todos os seus pelos por sentir aquele calor em um ambiente frio. Ao virar a sua cabeça os seus olhos são surpreendidos por um clarão vindo das tochas o obrigando a fechá-los e deixar de ver aquele movimento das chamas. Com os olhos cerrados observa que na porta há uma silhueta. Um corpo forte e de estatura alta permanecia parado diante da luz na beirada da porta onde apenas a sua sombra visitava o interior frio da cela. O único contato que os guardas tinham com o chão daquele lugar.   
-Garoto, vamos! você tem um dia... Credo que cheiro horrível, você morreu ai dentro? - diz o guarda pondo o braço em seu nariz para evitar o contato com aquela atmosfera.
"Que meigo perguntar se estou vivo", pensa o rapaz se mantendo estático no meio da cela.
-Vamos, garoto. Anda! Não tenho todo o tempo do mundo para dedicar a você - intercala o guarda dando dois passos para trás para evitar o contato com o interior da cela e deixar o ar do corredor limpar o cheiro da cela.
Sem entender o que estava ocorrendo e sem conseguir soltar uma palavra de sua boca seu corpo se manteve relutante em deixar o interior daquele lugar. Será que havia chegado o dia de sua execução e ninguém lhe avisou? Ou se tivessem feito ele já se esquecera. Não. Ninguém esqueceria o dia de sua morte mesmo um homem que já se encontra morto.
A impaciência do guarda prostrado na porta só aumentava e aos poucos a sua visão foi se adaptando à claridade. Quantos segundos tinham se passado? A velocidade da luz exigia de seu corpo um tempo que ele não tinha para se acostumar com toda aquela luz. Sem esperar repostas mais claras de seus olhos, seu corpo se moveu cambaleando até à porta que se encontrava aberta depois de tanto tempo.
Com os olhos direcionados ao chão seguiu a sombra do guarda. O primeiro passo fora da cela lhe trouxe mais outro arrepio. Não sabia dizer se essa sensação iria trazer a liberdade de um dia se livrar de todo esse tormento e sofrimento. A porta se fecha novamente atrás de si. Outro arrepio. Seu corpo sem entender a manifestação de tantos elementos da natureza se manteve confuso à diferentes reações ao ambiente. Com o cabelo sobre os seus olhos observou de relance a tocha que permanecia presa na parede a queimar como que se não tivesse mais nada o que fazer.
- Venha garoto. Por aqui - Disse o guarda  apontando o caminho com a sua mão aberta para um dos lados do corredor.
Ver aquele interior o trouxe lembranças da primeira vez em que chegara ali, as portas tinham um aspecto esverdeado, assim achava. Os seus olhos estavam encontrando outras cores além de cinza e preto. O corredor ladrilhado com blocos marrons e com espaçamento avermelhado junto com a cor alaranjada emanada pela tocha deixava o corredor brilhante em uma vivacidade vermelha e pequenos toques de escuridão entre a distância das tochas dava uma sensação de se estar dentro da garganta de alguma criatura. Se sentia sufocado mesmo fora de sua cela. Uma sensação abafada, era como que essa criatura o engolisse a cada passo que dava para o interior de seu corpo. O seu primeiro passo lhe trouxe essa sensação.
Uma certeza veio a sua mente. Algum dia ele teria que sair daquela garganta, e como se sentia, iria sair junto com os dejetos dessa criatura que o digeriu o expulsando de seu corpo em qualquer local. Esse pensamento inquieto o fez repensar que apenas servir de alimento não lhe traria benefício e que no final disso tudo ele seria apenas qualquer merda jogada no chão. 
Sem ao menos perceber do outro lado do corredor, às suas costas um outro guarda o aguardava com um porrete nas mãos. Aquele outro homem o sufocou ainda mais. Sem perceber as suas mãos já estavam algemadas. Quando acontecera? Seu corpo já não mais o respondia. Tentou insistir em olhar as suas mãos algemadas. Seus dedos estavam magros e dobrados os ossos desenhavam os limites de seus membros, suas unhas estavam quebradas e grandes, sujas e com um aspecto amarelado.
Com um empurrão do guarda em suas costas seguiu o que estava à sua frente. A cada passo dado dentro da garganta do demônio se sentia sendo digerido dentro de suas entranhas. Seus pés grandes aparentavam estar maiores com a ajuda das unhas. Seu corpo ainda cambaleava e insistia em permanecer perto das paredes que sustentavam as tochas. As portas traziam uma sensação fria e as tochas aqueciam o que há muito tempo não sentia outra coisa.
Os guardas conversavam ao seu redor, mas seus ouvidos estavam focados em ouvir o crepitar do fogo e os seus pensamentos que como turbilhões inflamavam e inquietavam a sua mente buscando um motivo para a sua retirada.
Ao tentar abrir  a boca a atmosfera quente penetra em seus pulmões o fazendo se engasgar com a sensação. Sem se importar com o engasgo do rapaz os guardas continuam a sua conversa. Aquela inspiração quente percorreu todo o interior de seu corpo aquecendo os seus órgãos internos. Após controlar a sua respiração ele pergunta a qualquer um dos guardas que o quisesse responder.
- Já chegou o meu dia? - Sua voz arrastada e fraca não tinha força suficiente para ecoar.
- Sem perguntas - Boceja o guarda que esperava não o responder. - Só anda - Insistiu dando duas cutucadas com o porrete.
Odiava aquele porrete.
Ouvia de dentro das celas alguns de seus corpos ecoarem com as suas vozes irritadas e com inveja de se ter um deles fora e eles não. Inveja. Mais um sentimento.
-Chegou o dia programado de mais um - Gritou uma voz rouca e úmida. Aquilo perturbou o coração que encaminhava para o dia de sua programação. Liberdade.
Ao fim do corredor subiram um lance de escadas de pedra acinzentada que girava em espiral. Para trás ficaram todos os gritos e risos dos outros presidiários que celebravam a chegada do dia de sua morte. Aceitado o fato andou sem pestanejar sem ouvir nenhuma das vozes dos guardas que insistiam em conversar sobre o atraso do pagamento. O fim das escadas dava à entrada a um salão com outros quatro guardas de vigia com armas em suas mãos e com os seus rostos sérios e marcados pelo sol. Pele seca. Os guardas faziam duplas em ambas as entradas do salão. No centro do salão iluminado pelo sol que entrava no recinto por uma abertura circular no teto que como água entrava levemente e preenchia todo o restante do local com o seu conteúdo. Luz.
Embaixo da abertura estava outro corpo. Um rosto sério e com uma roupa que não parecia a dos guardas que o carregara e nem daqueles que protegiam as entradas e a saída da sala. Um Homem com um bigode preto e a pele branca, os olhos levemente marcados pela marca do tempo. Tinha duas estrelas no lado direito de seu casaco. Um casaco de cor esverdeada com detalhes brancos nas bordas que dava um aspecto de vegetal ao seu corpo esguio e alto. O casaco cobria até os seus pulsos e as calças feita da mesma maneira e modelo seguiam até os seus tornozelos que eram preenchidos com um par de botas marrons que pareciam ser maiores que o corpo do homem vegetal.
- Bom dia, Gardon. Eu sou o Vice Supervisor deste local. Vs. Pantiel Mostravo. - Disse o homem vegetal com a falta de um sorriso em seu rosto afastando a afeição de querer responder o seu bom dia. 
- Trago novidades, garoto. Você tem uma visita - Continuou o Vice Supervisor causando um impacto à consciência de Gardon.
O seu corpo não conseguia anteriormente responder aos estímulos físicos que se encontravam fora de seu cela, agora tudo diante de si desapareceu, permaneceu imóvel buscando porquês e razões de receber uma visita. Não encontrava.



* * *


  - Uma visita? - perguntou sem pestanejar. A surpresa o esfaqueou.
- Me surpreende alguém como ele querer falar algo com você. Mas não quero perder o meu tempo conversando. Vamos! - Disse o Vs. Pantiel seguindo para a outra extremidade da sala. Ao sair da luz o seu uniforme ficou com uma tonalidade escura que parecia estar embebido em preto. Todos seguiram o Vice Supervisor, neste momento nenhum dos dois guardas que o carregavam estavam conversando. Um alívio.
Agora todos os corredores pareciam ser maiores, com exceção de algumas grades que estavam entre os espaços de todas as janelas. Estava perdido ali dentro do pouco que já andara percorrendo os corredores sempre vigiados e protegidos por outros guardas armados. Sair daquele mausoléu era libertador e andar o deixou cansado, há muito tempo já não fazia isso que era caminhar em linha reta.
Toda nova passagem tinha um par de grades de ferro que só se abria uma de cada vez, sempre vigiadas por motivos óbvios de segurança. Que exagero de segurança pensara para si mesmo. Sentia olhares sendo dirigidos ao seu corpo curvado, magro e sujo. Desajustado e com uma camiseta afogada e uma calça presa por um nó em sua cintura se sentia um boneco sendo carregado para o lixo. Ao passar pelas grades de ferro ele reconheceu o lugar por onde agora chegara. Uma sala alta com três andares e guardas percorrendo os corredores elevados que no seu centro flutuava no ar preso com correntes onde apenas os guardas andavam e davam de frente a todas as celas deste local. Não sabia se ainda poderia realizar cálculos, mas como sempre fora bom com números ficou fácil fazer a conta de quantas celas existiam em cada andar. Ao passar pelas celas viam pessoas lendo alguns livros, fazendo exercícios físicos, dormindo, ascendo para ele enquanto passava. Procurou a sua antiga cela, mas não sabia se aquele era o bloco. Saudades.
Saudades de seu amigo e vizinho, o velho Jão. O velho tinha ótimas piadas. Sempre tinha.
No bloco em seu primeiro piso tinha um total de doze celas com basicamente dois metros de largura por três de comprimento, assim deduzia pelo contar de seus passos ao decorrer da caminhada. Somado com o outro lado que tinha que de alguma forma seguir um padrão estético e lógico de número de celas, contou vinte e quatro celas em seu térreo, contando os outros andares que tinham um valor de três, com um sorriso leve em sua boca contou em seu cérebro. Aquilo o trouxe uma empolgação e uma excitação já esquecida pelos longos dias de nenhum estímulo ao seu cérebro. Noventa e seis celas. Se perguntou se em todas as celas poderia ter alguma vazia e se alguma tivesse ele se sentiria melhor de ser posto nelas novamente assim como fora a sua maior parte do tempo ali. Um lugar mais amigável e mais humano para esperar o dia de sua programação chegar.
Ao sair daquele bloco. O barulho dos outros presos rindo e conversando entre as celas o perseguia e aquele barulho o fazia querer conversar com alguém. Em sua frente estava o Vice Supervisor sempre reto e duro, um vegetal basicamente, o imaginar daquele jeito o retirou um riso de leve que fez um dos guardas dar uma porretada em suas costas. Até preso em seus devaneios ele estava agora. Assim percorreu mais um pouco entre as salas e corredores da prisão. Imensidão era o nome daquilo, nunca percebera que estava esse tempo todo dentro de um local que parecia ser uma cidade dividida em blocos, celas e corredores.
O próximo local a ser visitado agora era um grande banheiro. Vazio. Se encontrava apenas os dois guardas que guardavam o local de banho o olhando fixamente enquanto o Vs. Pantiel lhe dirige a palavra:
- Dez minutos para o banho porque você está cheirando a um cadáver - Irritado mexeu o canto de sua boca de forma inquieta e veloz. - Rápido garoto, ali no centro do banheiro têm sua muda de roupa, sabão e os cavalheiros irão lhes cortar as unhas - Ao ouvir essas últimas palavras ambos os guardas trocaram olhares chocados com a atual posição em que encontravam. - Ah, vocês dois não podem tirar o olho dele, não importa o que ele faça. Não importa. - Falou com um tom ameaçador e autoritário que pudesse reafirmar a sua posição de superior.
Ambos concordaram fazendo um sinal com as mãos colocando a ponta de seus dedos entre os olhos. O Vice Supervisor retirou de seu bolso uma tesoura e colocou na mão do guarda que carregava um porrete. Assim, deixou o jovem Gardon acompanhado dos guardas entrarem no banheiro. Deixando os três para trás ao chegar na porta do lado exterior chamou um do dois guardas que estava armado e pediu para um deles observar com cautela o que acontecera dentro do banheiro e qualquer sinal de valentia do jovem era dado a ordem de atirar.
Assim fez o guarda que se aproximou da porta e ficou ouvindo cautelosamente o que ocorria dentro do banheiro.
Foi retirado de seu pulso a algema que tanto o incomodava e feria. Marcas vermelhas circulavam o seu pulso. O Banheiro era uma grande sala com chuveiros nas paredes de azulejos azulados e entre os ralos havia uma pequena população de fungos e algas que circulavam o metal do ralo. O chão era frio, não tão frio quanto a sua cela, coisa que já se acostumara. Não saia de sua cabeça quem fora o visitar e para que esse banho? Era uma cortesia ou algum procedimento? "Manter a aparência de quem já vai ser morto é a preocupação de um vegetal", assim pensou. Não se importou. Quase nada mais o importava. Viu em um banco centralizado no meio do banheiro as suas novas vestes e um sabão tão amarelo quanto os dentes do velho Jão .
Se aproximaram ambos os guardas e deram um toque em seu ombro para ele seguir em direção a um dos chuveiros para tomar o seu banho. Os chuveiros ficavam uns próximos aos outros e ele imaginava ali um bando de homens tomando banho se esfregando sem espaço para lavar o seu corpo sempre se esbarrando em seu vizinho causando um estranhamento não bem-vindo em determinado local que exige uma política de não tocar e observar. Aprendeu muitas coisas pelo tempo que já frequentou aquele lugar e isso era uma delas. Em suas costas já estavam ambos os guardas discutindo baixinho com a tesoura nas mãos, de certeza estavam discutindo quem iria cortar as unhas dele e quem iria segurar. Ele já se sentia observado naquele ambiente e ter apenas dois homens o observando não mais o incomodava, só que a sua aparência também o assustava.
Retirou a roupa de seu corpo, rasgada e suja, com pequenos buracos e folgada. Os ossos apareciam em várias partes de seu corpo, seu peito já estava desenhando as suas costelas, poderia até contá-las, ficou em dúvida de quantas tinham contado, mas logo esqueceu dessa brincadeira. Ficou feliz por ali não ter um espelho ou o chão ser muito limpo para refletir a sua imagem. Pegou o sabão amarelo e se dirigiu ao chuveiro. Ligou a torneira e fora surpreendido por uma forte torrente de água fria que saia do chuveiro e a cada gota que caia em sua pele se diluía a sujeira que estava impregnada em seu corpo. Ao passar as suas mãos sobre a superfície de seu corpo ele voltava a conhecer as suas formas e as dimensões, e junto a isso a sujeira escorria por seus dedos. Ao olhar para os seus pés a água que escorria estava em um tom de preto e esverdeada, não sabia que um corpo tivera acumulado tanta sujeira. Ele imaginara neste momento quanta sujeira um de seus vizinhos de cela que estavam a muito mais tempo que ele deveria ter. Empolgado com a sensação arrastou de seu corpo com vivacidade toda a sujeira, limpando o seu rosto, cabelo que estava emaranhado e os seus cachos prendiam os seus dedos ao transpassar as suas mãos. Esfregou o seu pescoço, braços, pernas, nádegas, peito, costas, axilas e o seu sexo que há muito tempo não via e aquela visão o fez se sentir um pouco mais másculo. "Eu cresci e não vi, que estranho...", assim pensou ao observar que havia alguns pelos que enovelavam a sua cintura. 
O sabão amarelo foi um bônus a todo aquele tratamento, ao esfregar em suas mãos no sabão que fizeram bolhas o animou e o fez lembrar de seu tempo em que a sua mãe o dava banho e ele sempre insistira em brincar com as bolhas de sabão em sua bacia. Reconfortante. Passou o sabão em seu corpo para retirar o restante da sujeira e mudar o cheiro natural nada agradável. Retirou as bolhas sem muita pressa apreciando a sensação de ser abraçado por uma macies instantânea. Ele duvidava da qualidade do sabão, mas o que ele poderia exigir naquela situação. Nada.
Os guardas mantinham o olhar observador no rapaz dedicado em seu banho o deixando aproveitar cada segundo deste privilégio.
 Mesmo tomado um banho ainda se sentia sujo, sentia sua pele grudar e áspera ao toque. Desejava mais um banho demorado e ninguém o observando para gozar de cada segundo. Vestiu as suas novas vestes e se sentou no banco de madeira centralizado no banheiro e os guardas se aproximaram.
- Se você reagir até mesmo com um suspiro juro que arranco os dedos - Exalou com força o guarda do porrete, que agora tinha passado para o seu colega de trabalho que o segurava pelos braços em suas costas. Assim fora cortada as suas unhas do pé, um belo trabalho de pedicure e de manicure. Não apresentou nenhuma resistência mesmo com a violência dos guardas segurando os seus dedos e cortando as suas unhas como que se fossem levar os seus dedos para casa como troféus. Apressadamente terminou. Um tratamento básico.
Mesmo assim não se sentia totalmente limpo.
Deixou para trás as suas velhas vestes e seguiu com os guardas para fora. Em pé sem se mexer estava o Vs. Vice Supervisor parecendo um vegetal.
- A sua aparência melhorou, viu? Sempre tratamos os nossos prisioneiros com cuidado, não é, garoto? - Ouvir isso de alguém como ele que só se importava com as aparências o irritava.
Assim o seguiu algemado entre os guardas que mostravam em sua face uma indignação. Ele sabia o motivo. Subiram dois lances de escadas e entraram em uma porta com duas entradas simultâneas. O seu interior estava iluminado por uma coisa que ele nunca vira, havia pendurado nas paredes do teto um fio que em sua extremidade conservava em seu interior de vidro um brilho amarelado que lhe encadeava e não conseguia desviar o olhar. Apaixonante.
Sem paciência para conviver com tamanha ignorância, a luz o hipnotizava e ele parou no meio do caminho do corredor para apreciar todo esse esplendor. Uma estocada nas costas o fez voltar a andar e cambalear batendo no guarda a sua frente que o repreendeu com um olhar feroz e impaciente. O corredor tinha algumas outras portas que o seu conteúdo não era visível. Curioso tentava observar o que havia ali. Na quinta porta o Vice Supervisor parou e o encarou o mirando com um semblante nada amigável.
Os dois guardas cada um tomou um lado do seu corpo e o vegetal ficou em sua frente. Inclinou levemente seu corpo o suficiente para não se aproximar do seu e o suficiente para ele ouvir com clareza. O seu hálito era de menta.
- Garoto, eu não sei o que você foi capaz de fazer para conseguir a esta altura a presença deste homem em minha instalação. Não importa o que você esteja tramando eu vou descobrir porque não há nada que seja feito entre as paredes desta prisão que eu não saiba, entendido?
Calado permaneceu, ele não ligara para o que acabara de ouvir, "Eu tramando alguma coisa?", pensara agredindo o seu subconsciente atrás de uma resposta. Virou as costas e abriu a porta gentilmente deixando espaço suficiente para o seu corpo adentrar no interior da sala. Ou seria outra cela?
Ele entrou na sala com o seu coração entrelaçado em sua garganta para não escapulir entre seus dentes. A sala tinha uma parede em um tom esverdeado e no centro havia uma mesa de madeira e um par de cadeiras em cada extremidade. Acima havia no teto uma dessas hastes que carregam em sua ponta aquele recipiente de luz que o hipnotizava. Ficou ali em pé com os olhos semicerrados admirando aquele brilho vigoroso.
- Fascinante não acha?
Uma voz ecoou dentro da sala que o retirou de sua viagem pessoal. Ao desviar brevemente o olhar observou no seu canto esquerdo uma espécie de corneta de cor de cobre.
Logo percebeu que não estava ali sozinho. Queria saber de quem era aquela voz. Ao dirigir o seu olhar para a direção de onde vinha  ele viu quem o estava a sua procura.
Um homem estava em pé com a sua mão estendida para um aperto de mão. Sem perceber ele se encontrava ali preso com aquele estranho, ainda algemado não fez esforço para se dirigir ao aperto de mão. O homem era alto, forte, com pele branca e uma barba negra com detalhes brancos em seu queixo o dava um charme sedutor, muito bem aparada e cobria todas as bordas de seu maxilar, aparentava estar na quarta década de sua vida, seu nariz pontudo e olhos pretos traziam um equilíbrio à sua face. Estava vestido em uma elegância ímpar o que fomentava à sua importância e nível de estabilidade financeira. Portava um terno preto com uma gravata que se perdia em um tom de azul muito escuro, com aquela iluminação era difícil a se atentar aos detalhes. Estava com um sobretudo marrom pendurado no apoio para as costas em sua cadeira. No detalhe do bolso esquerdo de seu terno havia um broxe de um guarda-chuva fechado esperando uma tempestade para se abrir. Preso no seu colete havia um fio de ouro que se dirigia ao seu bolso, quando pequeno descobriu em seus trabalhos na feira que ali se tratara de um relógio de bolso. Deitada na mesa estava a sua cartola, achava aquele chapéu muito egocêntrico e servia apenas para chamar a atenção.
- Deixe-me compor a apresentação - Disse com uma voz grave, potente, educada e polida que mostrava a segurança de seu portador. - Me chamo Pedro Midas, mas muitos me conhecem como Midas, o Barão. Prazer em finalmente o conhecer Gardon Marró - Assim, recolheu a sua mão que ainda se estendia no ar esperando um retorno do seu interlocutor.
- Sente-se, por favor - Disse educadamente apontando a cadeira de madeira que estava ao seu lado.
"Então esse era o Barão daquele dia que estava na ala dos programados?" se perguntou imaginando aquele homem naquele corredor conhecendo a história de cada preso.
- Desculpe-me o incômodo, mas já vinha buscando uma conversa com o senhor têm um prazo de duas semanas.
Ao saber que desde a visita do Barão havia passado apenas duas semanas, aquilo pareceu uma eternidade dentro daquele universo abandonado. Permaneceu calado ouvindo tudo que o Barão dizia, a sua mente fervia de tantos porquês daquele homem está ali.
- Você ainda não se apresentou, poderia...
- O que você faz aqui? -  Gardon o interrompeu como uma flecha corta ao meio uma maça.
Impactado com a atitude de Gardon, Midas se recolhe em sua cadeira e põe as mãos na mesa mantendo uma postura ereta e penetrante. Seguro.
- Gardon, eu vim lhe fazer uma proposta. Espero que estejas disposto a ouvi-la.
- Olha, eu não quero te desanimar ou coisa desse jeito, mas não tenho interesse nenhum em nada. Você não sabe...
- Não sei nada sobre você? - Interrompeu o Barão com uma velocidade ácida sem perder a fineza de sua personalidade. - Se é isso que quer dizer Gardon, te vejo enganado. Eu sei muito bem o que dizem sobre você, mas nada sei das suas verdades.
- Então você já sabe o que está acontecendo agora - Com o corpo jogado na cadeira Gardon remexeu-se retirando o peso de um lado para o outro.
- Asseguro dizer que sei tudo que está acontecendo, inclusive sei o dia de sua programação.
Ouvir aquela palavra "Programação" que ecoou violentamente dentro de seu cérebro fez seus olhos se dirigirem para o recipiente de luz que estava no meio da sala, no meio dos dois, tentava esquecer que aquele conjunto de letras significava morte.
- Se chama luz elétrica - Disse o Barão apontando o seu dedo para a luz, trazendo Gardon à realidade retirando de seu subconsciente a dúvida do que seria aquilo. Retirando da atmosfera a sensação de desconforto entre as interrupções o Barão segue com a sua palestra. - Gardon, eu não tenho muito tempo e quero que você me ouça.
Acomodado desajeitadamente em sua cadeira Gardon levantou brevemente o seu olhar ao Barão, a partir deste momento passou a odiar tudo nele.
- Bom, eu já sei de sua história, mas quero ouvir de você o que realmente aconteceu. Você inicialmente foi acusado de assassinar seus pais e foi julgado na corte de Campina a ficar até o dia da sua programação em Fosso de Valeseco acusado de quatro anos de prisão e no quinto ano com a sentença da programação, sem chances de retorno e de visitas.
Uma ira aqueceu a face de Gardon que já não aguentara mais ouvir e reviver aquilo novamente, passou uma vida ali dentro ouvindo mentiras sobre si mesmo e sentia pesares em lembrar que fora privado de uma vida só por proteger outra que ele amava.
Continuou o Barão:
- Você nesse dia lhe deu com coisas que nenhum outro homem poderia conseguir superar, porém, neste dia você realizou um atentado à vida ...
- CALA A BOCA! Olha aqui Barão de qualquer lugar imundo. Você não me conhece e de que importa esta visita? Você só veio aqui para dizer o que eu já sabia. Eu ja sei que irei morrer e nada disso vai mudar, não tenho nada a fazer ou oferecer a você.
O Barão permanecia parado sem reagir a essas palavras e isso o fazia ficar com mais raiva e querer ali mesmo arrancar sangue de sua face com as suas próprias mãos.
Neste momento um dos guardas entra ferozmente pela porta com o porrete nas mãos buscando controlar a situação. O guarda para ao ver o Barão em pé com a mão direita levantada.
- Deixe-nos a sós, por favor senhor guarda - As suas palavras ecoaram na sala e saíram pela porta polidas em um tom rouco e sério.
 Gardon nunca pensara que alguém como o Barão levantaria a mão para alguém como ele para repreender uma atitude de agressão eminente. A sua raiva só se inflava.
- Eu não preciso de sua misericórdia.
- Eu não vim te oferecer misericórdia, Gardon - Agora a sua voz rouca penetrava em seus ouvidos como navalhas que o imobilizava. - Eu vim te oferecer uma oportunidade de combater aquilo que você criou naquele dia.
- Me responda uma coisa antes - Exclamou Gardon.
- Com toda a sabedoria.
- Quanto tempo para a minha programação?
- Bom, digamos que tecnicamente não sei - respondeu o Barão indicando levemente a com a cabeça o canto da sala que se encontrava atrás de Gardon com uma escuta. Neste momento ele sabia que estava sendo ouvido e que o Barão sabia de muito mais coisas que não poderiam ser ditas. Essa vigilância o fazia se sentir pressionado.
Ainda sem entender os objetivos do Barão, Gardon se manteve em silêncio tentando descobrir por meio de qualquer sinal uma pista.
- Gardon, eu quero que você me fale o que aconteceu naquele dia.
- Por favor, não toque mais neste assunto...
- Você viu não foi? Você criou aquilo no momento em que...
- Eu não...
- Gardon, por gentileza não me interrompa mais. Se tiver perguntas as guardem para depois.
 O Barão retira de seu bolso o relógio de bolso e decepcionado ao ver as horas o põe novamente em seu colete, olha fixamente para os olhos de Gardon que insistiam em correr de seu olhar penetrante.
- Você realizou uma coisa que não compreende. Até hoje você deve se perguntar o que foi aquilo. Bem, você cometeu um crime à vida, fato que é inegável. Criou algo que não sabe, dando vida a...
- Você não sabe o que aconteceu então não venha me dizer como que já soubesse de tudo.
Com paciência o Barão respira fundo mantendo a sua postura.
- O que eu disse sobre interrupções?
Gardon se sentia uma criança. o Barão continuava a penetrar a sua alma com cada palavra dita.
- Ainda não ouvi a sua versão real dos fatos. Mas de uma coisa garanto. Você viu a manifestação de seu ódio neste dia, aquele sentimento que fez ferver seu corpo e lhe deu forças para realizar a imprudência de decidir sobre a vida de alguém e por tomar uma decisão que o faz entrar em constante remorso. Criou algo que não sabe lhe dar e este anda por entre as cerras se alimentando do mesmo sentimento que você o gerou, o seu ódio ecoa na sociedade e vim lhe oferecer a oportunidade de lutar contra este sentimento.
Sem acreditar no que acabara de ouvir daquele homem que permanecia com o semblante sério Gardon se explodiu em risos. Ele sabia que os seus risos era para tirar a atenção de sua surpresa ao saber de como o Barão sabia dos detalhes de seus sentimentos e de como aquilo aconteceu. O fato de reviver aquilo novamente o perturbava o deixando cada vez mais inquieto na cadeira e em sua cabeça. Sentia o ódio explodir dentro de você. Assim, continuou o Barão entre a negação de Gardon.
- Você colocou tudo que sentia naquele momento, todo o ódio acumulado e direcionado a uma só pessoa, e você sabe o porquê.  Mesmo assim você se encontra surpreso por se ver como uma criança que tirou a vida de seu pai violentamente e dava vida a algo que não compreendia. Eu sei que depois que a vida de seu pai lhe escorreu pelos olhos você viu aquela sombra tomar forma. Uma sombra que tocou o seu corpo e lhe causou um arrepio, este arrepio que sentiu é incomum e você nunca irá esquecer junto com aquele sorriso cheio de presas prontas para lhe devorar a última gota de ódio. O que ele falou a você naquele momento Gardon? Ele lhe agradeceu?
Impactado com a descrição do que realmente aconteceu Gardon ficou paralisado em seus pensamentos por reviver novamente aquele momento, aquela sombra com aquele sorriso.
- Você ouviu a voz de seu pai na sombra. Creio que não tenha demorado muito para ela ter assumido a sua forma corpórea e sorrir para você desejando semear e se alimentar de tudo que se originava de seu pecado. Gardon, você criou com o seu próprio ódio, um Aphycos.
Palavras não vinham em sua boca. A descrição realizada pelo Barão o fez sentir um arrepio, mas não foi como aquele que ele sentiu naquele dia. Em sua cabeça veio fleches deste dia que revivia o momento em que se encontrava com as mãos ensanguentadas e a faca em sua mão. Via uma sombra deslizar por debaixo do corpo de seu agora falecido pai se levantar no ar e abrir um sorriso cheio de dentes que pareciam afiados tortos e molhados com a sua saliva exagerada e ainda sem o controle aparente de sua língua fina e roxa que dançava no ar desajeitadamente deixando a criatura ainda mais aterrorizante.
- Esse sentimento...
- Ainda faz parte de você - completa o Barão com seriedade em um tom de voz mais baixo e amigável. O jovem algemado se viu congelado diante da descrição feita por aquele homem, quem era ele para saber do que realmente aconteceu naquele dia e o que a sombra do seu pai tinha lhe dito?
- Gardon, o seu ódio vai perdurar por uma eternidade até você se desfazer de tudo que te prende e faz odiar todo dia a mesma coisa. O ódio é a semente que nunca dá frutos.
O Barão saber o que aquela coisa falou naquele dia o surpreendeu, mas o que tudo isso tinha a ver com ele?
- O que tudo isso tem a ver comigo que já estou programado? Eu sou um assassino, Barão, pessoas como eu só podem esperar o pior na melhor das hipóteses.
- A minha proposta seria te ajudar a ajudar pessoas a combater o ódio que criaram assim como você combater o seu. Eu sou aquilo que chamam de...
- Egocêntrico e metido a sabe tudo. Você não sabe metade do que aconteceu, você nem me conhece. Não preciso de sua proposta, Barão, deixa que eu resolvo os meus problemas.
- Esperar o dia de sua morte não vai resolver os seus problemas, Gardon. Eles ainda ecoam e influenciam na vida de outras pessoas, estou aqui para te oferecer uma oportunidade de recomeçar...
- Não tenho tempo! - Gritou Gardon com os olhos cheio de lágrimas a voz travada em sua garganta pesava tanto quanto tudo que sentia neste momento - Eu já estou programado e como você disse eu não tenho condições de melhoras, já explicaram sobre o meu julgamento e mesmo se eu sair daqui irei passar uma vida sendo julgado.
O Barão permaneceu calado e preso em sua cadeira. Apenas olhou para Gardon com compaixão. Uma tormenta de sentimentos exalava pela respiração do jovem que se encontrava preso em suas algemas, em uma cela, em seu passado e arrependimento.
- Não quero nenhuma oportunidade de lutar contra o meu ódio ou coisa desse tipo, eu era de uma criança e de certeza aquilo foi coisa de minha cabeça. Por favor se retire e não venha mais aqui. Seja homem para admitir que não tenho mais caminho a seguir, fiz minhas escolhas e as consequências são só minhas.
- Devo lhe advertir que estás errado em sua colocação. As suas escolhas não atingem só a você...
- Já chega Barão! Estou cansado dessa sua bondade exagerada em querer mudar uma coisa que não tem jeito. Só me deixa morrer em paz pelo menos - Braveja Gardon se levantando da cadeira a derrubando no chão.
- Isso que procura não é paz, você deseja o dia da programação para tentar se livrar de tudo isso que sente. O que você busca é uma maneira de justificar os seus erros e fraquezas.
Irado com as palavras do Barão, Gardon pula sobre a mesa tentando segurar o terno daquele homem que proferia palavras que agrediam o seu coração e pensamentos que ele esconde para nunca precisar lhe dar com eles. A porta se abre rapidamente e entra os dois guardas que o levou até aquele lugar. Tudo ocorreu em um segundo e Gardon se via no canto da cela com a mão do Barão em seu peito e com as suas costas na parede, com a sua mão direita o Barão segura o porrete do guarda que ainda estava em suas mãos. E no centro da sala o outro guarda ficou incrédulo com a rapidez do Barão e a sua capacidade de segurar com apenas um braço a força de seu colega de trabalho.
Com gentileza ele solta o bastão da mão do segurança e olha profundamente nos olhos de Gardon.
- Sem mais violência. Já sofremos o bastante.
Essas palavras penetram em todos presentes na sala fazendo retrair seus corpos e relaxando todos os seus músculos aliviando toda a aflição e adrenalina dessa invasão. Os guardas gentilmente levam o Gardon algemado e estranhamente quieto para fora da sala. Com o coração pulando em seu peito e a sua cabeça fervendo em pensamentos e sentimentos que vieram a tona em tão pouco tempo segurou com todas suas forças as lágrimas que insistiam em pular de seus olhos.
Saiu do corredor com aquelas luzes que agora não faziam mais sentido e não o tomavam mais a atenção. Fora levado pelos guardas até o encontro do Vs. Vice Supervisor, o vegetal.
- Hora de você voltar para a sua cela. Você não está em condições de receber mais nenhuma visita. Esta foi a última apenas pela insistência do Barão. Vamos volte pro seu lugar. - Disse com um desdém que fez correr sangue à face de Gardon, mas um dos guardas o segurou pelo braço discretamente. Assim o vegetal deu as costas e seguiu subindo uma escada de ferro e sumiu entre os corredores. Não percebeu que já se encontrava de frente a sua cela e que tinha perdido à noção geográfica daquele lugar e o tempo que levou para chegar. A porta de sua cela é aberta, suas algemas retiradas e sem esforço entra em seu velho lugar, a cela não tinha mudado em nada. Atrás de si a porta se fecha com um barulho ensurdecedor do metal rangendo. O Barulho ecoava em todo lugar. A luz do sol já tinha se escondido, já havia chegado a noite. Sentou no chão ao fundo de sua cela e esperou o seu coração e pensamento se acalmarem.
A noite estava banhada pela luz da lua, assim que uma nuvem se desloca no espaço e todo aquele brilho pálido entra em seu recinto pela única abertura existente naquele local.
- Então é aqui que você vai esperar até o dia de sua morte?
Assustado com o que acabara de ouvir, Gardon procurou dentro de sua sela de onde vinha aquela voz e seu corpo levantou em defensiva procurando em todos os cantos alguma forma à quem pertencia aquela voz.
Pronto para gritar ali dentro para pedir a atenção dos guardas, reconheceu de quem era aquela voz, ela lhe era familiar. O dono daquela voz surge iluminado pela luz da lua o seu corpo resplandecia em seriedade e fineza. O Barão. Estagnado em seu canto Gardon busca força em sua voz para pedir por socorro, neste momento não soube realmente o que aquele homem queria de você estando naquele lugar.
- Gardon, podemos sentar? - Pergunta o Barão com uma face corada, a cartola dava impressão de ser mais alto.
- Como você entrou aqui, hein me diz? - intercala Gardon tentando reafirmar a sua virilidade e autoridade naquele local.
- Não fui sincero com você e esse é o momento. Não poderia falar tudo porque temia anteceder a sua execução.
- Como você entrou aqui?
- Aconselho a falar mais baixo, se eles me encontrarem aqui as coisas irão cair em desgraça.
Gardon sentia a sua pele e espíritos sujos e conservava pena daquele homem no mesmo lugar que você. De alguma forma ele começou a admirar a sua postura de enfrentar as coisas de frente. Pela primeira vez em muito tempo ele tinha companhia  naquele local.
- Se você quiser que eu saia irei fazer isso. Não quero o infortunar, mas preciso que você me ouça e irei responder todas as suas perguntas se preferir - A voz do Barão era baixa mas ainda penetrava em seu espírito, aquele homem o acalmava e ele imaginou os seus filhos correndo para os seus braços, beijando a sua barba e brincando em seu grande e infinito casarão.
Não existiam palavras para esse momento e o silêncio foi a resposta que o Barão queria ouvir.
- Posso sentar? - Perguntou o Barão dirigindo a sua mão até o canto da parede. Uma cena cômica que nunca passara pela mente de Gardon ver aquele homem sentado em um canto sujo de uma sela junto com um assassino.
Gardon apoiou as suas costas na parede desceu e deixou o seu corpo cair no chão. Enquanto isso o Barão elegantemente retirou a sua cartola e o seu sobretudo marrom os colocando no chão, o sobretudo dobrado e por cima a cartola, aquela organização o incomodava. Permaneceu observando o Barão se acomodar em seu canto enquanto ele esticava o seu corpo no chão sujo, não se importou e nem demostrou nenhum sentimento de nojo. Respirou fundo. Pela primeira vez Gardon tinha a certeza de que o Barão tinha deixado permitir a entrada daquela atmosfera em seus pulmões. Estavam respirando o mesmo ar. Encostado com a cabeça na parede Gardon percebeu que os cabelos do Barão estavam desarrumados e uma mexa escorria pela sua testa. Olhando para o nada o Barão recitou palavras que Gardon deixou de acreditar há muito tempo.
- Eu quero te tirar daqui.

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